Óbitos e votos: um estudo didático com os dados da COVID-19 no Brasil
Paulo Wenderson Teixeira Moraes
Prof. Adjunto UNEB
Psicologia
08 /06/2021
Apresentação
Ao longo da construção deste texto, um certo incômodo surgiu no ventre dos pensamentos do escritor: quando a luz da razão acende e a visão inexorável da consciência captura a fotografia do drama, torna-se angustiante tratar de mortes através de números sem rostos. O sentimento de impotência é a consequência inevitável da participação numa guerra épica de proporção mundial que por vezes paralisou a pena do artista e insinuou uma desistência prematura. Como avançar sem ferir os irmãos que se encontram no exército inimigo? Num sentido espiritual, todos nesse planeta compartilham alguma humanidade que corre nas veias junto com o vermelho necessário para a vida que caracteriza esse corpo material comum da espécie humana, quente e pulsante. A irmandade inscrita no sangue da raça humana é universal e faz sonhar com uma sociedade solidária e favorável ao desenvolvimento pleno de quem quer que queira crescer, sem os grilhões da escravidão ou das injustiças historicamente construídas, indo de encontro àquela paz que vem junto com a justiça.
Como fugir de uma guerra civil fratricida? Depois de assistir a qualquer filme sobre algum conflito armado, pergunta-se por quem os sinos dobram. Mas a guerra contra um vírus é de uma natureza tão exótica e inusitada que nenhum romancista ou cineasta poderiam antecipar os detalhes desse enredo melancólico. No Brasil, a pandemia de COVID-19 aconteceu concomitantemente a uma polarização da política nacional e isso diminuiu a capacidade de amortecer o impacto da doença e desacelerou as medidas preventivas necessárias para combater a disseminação do vírus cuja transmissão avança de pessoa para pessoa.
Meditando sobre as motivações para entrar nesse campo de batalha, é possível encontrar consolo nos conselhos de Krishna a Arjuna, tal qual se lê no Bhagavad Gita. Arjuna se negava a entrar na luta, pois não queria ferir seus parentes que estavam no exército adversário. Na condição de guerreiro virtuoso, nenhuma flecha sairia do seu arco para ferir desnecessariamente qualquer semelhante. Ele agia sempre guiado pela força das ações iluminadas pelo bem e pela sabedoria advinda do conhecimento do carma: toda ação produz uma reação.
Mesmo observando o coração ingênuo e puro do seu pupilo, Krishna começa a lhe ensinar que a ação guiada pelo bem também é terrena e carregada de interesses próprios: receber o bem de volta. Por isso, não deixa de ser uma ação interessada visando o benefício dos resultados. Fazer o bem é uma ação mais inteligente do que se deixar levar pela paixão ou pela ignorância. Mesmo sendo a ação humana mais inteligente, há alguns inconvenientes na postura insistentemente bondosa. Muitas vezes, a pessoa se apega ao bem e deixa de fazer o que é justo, tornando-se relapso com os deveres. Uma das principais motivações do “bonzinho” é não querer entrar em conflito com algum irmão, de “sangue” ou de “humanidade”, que poderia sofrer diante de sua própria atitude ou comportamento adverso. Entrar em conflito é inevitável na dinâmica natural da vida em sociedade, mas a forma de resolver as diferenças e desavenças é uma escolha que envolve alternativas: atacar violentamente o oponente? Encarar o problema de frente com sabedoria? Ou negar o conflito para manter uma reputação frágil, de pessoa pacata e bondosa, empurrando a sujeita para baixo do tapete?
Existe uma ação que não pertence ao plano terreno e não está ligada a qualquer resultado imediato no plano material. É a ação desinteressada de natureza divina e de caráter libertador, pois faz cumprir um dever sagrado. Após explicar isso, a cartada decisiva para convencer o inigualável arqueiro foi lembrá-lo de que é impossível atingir a alma de alguém com uma flecha, pois ela afeta apenas o corpo corruptível e temporário. Não se faz mal a alma de ninguém. Só a própria pessoa se afeta com a transitoriedade do que acontece ao seu redor. Se negar a entrar numa guerra para produzir a justiça motivado pela necessidade infantil de preservar o próprio ego, que apenas calcula os benefícios imediatos de se resguardar numa bondade excessiva, poderá produzir efeitos mais adversos do que enfrentar os fantasmas da culpa ou responsabilidade que uma ação assertiva poderia acarretar. A Negação da luta seria vergonhoso para os próprios adversários que esperam do guerreiro a coragem de combater pelo que é verdadeiro, mesmo tendo seus mestres e parentes do outro lado das trincheiras.
O autor desse estudo didático não teve nenhum parente próximo abatido letalmente por causa da pandemia. Até o momento em que essas palavras foram digitadas, se registraram no país mais de quatrocentos e sessenta mil mortes. Ele é filho de uma classe média que tem mais condições de se cuidar e de se isolar nos modernos apartamentos-prisões. Isso, no entanto, não minimizou o sentimento de dor relacionado com o sofrimento de muitos amigos e parentes que tiveram que se recolher em luto devido ao falecimento de entes queridos e próximos a eles. E é pelo sentimento que a motivação se agiganta para utilizar a arma-flecha-literatura como estratégia de defesa diante de um inimigo insidioso. Impossível saber definitivamente se o conhecimento e a inteligência liberta, mas no mínimo proporciona uma defesa contra o engano e o engodo.
Se cada palavra representasse uma flecha que mata, seria difícil chegar até o fim dessa prosa didática. Teria que haver muita inspiração divina, em cada letra de cada palavra, para que mesmo ferindo amigos e parentes queridos, algum benefício seja alcançado e alguma consciência seja lançada para compreender esse fenômeno que assola os brasileiros. Isso é alcançado através de ideias fundamentadas e do estudo aprofundado em pesquisas amplamente revisadas por todos os cidadãos que queiram verificar com os próprios olhos. Mas o objetivo vai muito além de ferir: é preciso dotar a coletividade com as mesmas habilidades do arqueiro, para que o povo não seja ludibriado e possa ter consciência ampliada do que acontece ao redor e assim ter poder de reação e defesa.
Até mesmo os cristãos sabem que a arma de Jesus foi a palavra que foi mais forte de durável do que qualquer objeto perfurante ou cortante. É de se lamentar que uma comunidade religiosa queira pegar em armas e deixar as palavras de lado, deixar o conhecimento da ciência desamparado e regredir para uma fase infantil, onde as pessoas estão pressas em falsas concepções como a de que a Terra é plana. Se for para pegar em armas, que sejam as flexas-palavras da sabedoria, que iluminam as decisões e nos livram do infortúnio.
Sabendo que não posso afetar a alma de ninguém, pois o espírito é eterno e pertence a outro plano, reanimo a pena-flecha para que ela cumpra o seu papel educativo: informar, ensinar e convidar para a arte da reflexão e sabedoria. Na certeza de que todas as almas que desencarnaram permanecem na eternidade projetando a sua luz própria, foi tomada a liberdade de tornar o texto mais leve e irônico, como um bom livro didático que procura tirar lições das adversidades que a vida impõe. Dessa forma o estatístico pede licença aos parentes daquelas pessoas que continuam desencarnado, dia após dia por conta de um vírus, para tratar da morte de forma abstrata, como números convincentes que se tornam flechas num arco e apontam para um objetivo comum: vencer um adversário difícil e malicioso.
O conhecimento pode libertar, mas também pode ser arma fatal usada para ludibriar, confundir e torturar. É possível ensinar e aprender tudo o que o ser humano construiu ao longo da história. Entretanto, não se tem garantia do que será feito com todo esse conhecimento. A Ética é uma tentativa de desenvolver valores honestos e que promovam a verdade no benefício da coletividade. A dificuldade é que não existem regras precisas como uma receita de bolo e as pessoas possuem muitas perspectivas sobre a verdade dos fatos. Um limite para as atitudes de alguém é verificar o dano causado a outro indivíduo e à coletividade. Espero que a consciência desse limite favoreça as melhores decisões sobre a utilização do conhecimento proposto nos capítulos seguintes.
Este livro começa explicando a natureza da média e da mediana no primeiro capítulo. Esse primeiro passo será fundamental para ensinar o conceito mais complicado de desvio padrão, que será apresentado no capítulo seguinte. O capítulo 3 tratará de um número abstrato chamado “z” que auxiliar no cálculo de probabilidades estatísticas de maneira a ser possível comparar dados que pertencem a escalas desiguais. Esses assuntos introdutórios constituem a base do conceito de correlação estatística, que é a tentativa de avaliar se dois fenômenos que variam no tempo fazem isso de forma conjunta e paralela ou de forma independente. Se tivermos certeza de que um fenômeno aconteceu anteriormente a outro, é possível estabelecer uma relação de causalidade, em que X causa Y. Nos fenômenos sociais, a certeza absoluta em relação à determinação de um fenômeno isolado é uma ficção, pois normalmente se trata de causas associadas a múltiplos fatores de difícil mensuração e compreensão. Entretanto, é possível utilizar técnicas para estimar o quanto um fenômeno X influencia um resultado Y, não em termos de tudo ou nada, mas buscando uma proporção ou probabilidade de influência. No capítulo sobre regressão linear será tratado desse assunto: o grau em que a variação de um fenômeno explica outro.
A construção dos argumentos e da análise conta com o auxílio e a participação do leitor que está apontando as lacunas e fomentando as discussões em tempo real e a tempo de trazer o barco a prumo, corrigindo a rota da viagem para um porto seguro. Cada capítulo está sendo postado a cada mês com um espaço para crítica do leitor. Lá é possível deixar comentários, propor correções e criticar as ideias apresentadas. É um convite para embarcar nessa jornada da construção de um livro. Espero que quando as velas forem recolhidas numa baia segura e o livro for para a impressão, nesta mesma página, eu tenha que digitar, letra após letra, inumeráveis leitores que se deram ao trabalho de contribuir com a obra. Será que já tem isso: escrever junto com o leitor? Bem, ninguém inventa nada, vamos então reescrever do nosso jeito!
Capítulo I: Mediana e Média
Deus não joga dados no universo. Essa é uma célebre frase de Einstein que foi cunhada para expressar a improbabilidade das energias e forças presente no universo terem sido engendradas como um mero capricho do acaso. Para apreender detalhadamente a profundidade dessa lição é necessário visitar o país das Maravilhas da Matemática Complexa, que é inacessível para a maior parte da população e requer a iniciação na linguagem, utilizada nessa terra exótica, que é abstrata e gera significados ocultos em números impossíveis para um mero mortal, igual ao escritor que vos conduz neste estudo didático. Então o objetivo desse capítulo é compreender os números mais simples que são utilizados na Estatística e introduzir o conceito de mediana e de média através de dois fenômenos populacionais registrados na realidade brasileira: os votos por Estado no primeiro turno das eleições de 2018 e o número de mortes por COVID-19 em 16 de abril de 2021.
A aposta é uma das formas das mais antigas de se colocar em risco toda uma fortuna. Mas se o Todo Poderoso não joga dados, certamente alguém joga. Na Bíblia há indícios de que as forças tenebrosas tentaram apostar com Ele e colocar em xeque a obediência do servo Jô. Já no Mahabaratha, Yudhistira (filho de Darma, deus da Justiça) perdeu tudo num tabuleiro de dados. Tudo mesmo. Seu reino, sua riqueza e sua mulher, da qual ele só possuía um quinto, uma vez que os outros quatro irmãos possuíam as outras partes da maravilhosa e bela Draupadi. No livro Psiquê e as Cartas Mágicas (2020) é possível saber um pouco mais sobre esse prodígio de uma flor com 5 maridos, deixando o próprio Jorge Amado perplexo com esse ancestral caso de um relacionamento pós-moderno de múltiplas faces que surgiu na face da terra, talvez antes do dilúvio universal. Sua inquietação, vale ressaltar, não é pela grandeza numérica do matrimônio ou pela carência de licença poética para criar uma imagem abstrata de uma mulher dividida em cinco, mas pela disposição de um marido em apostar a própria mulher numa mesa de azar.
Então, quem joga dados são os próprios homens. Por não possuir todo o conhecimento das engrenagens da sorte, o indivíduo comum aposta na esperança de que a providência divina bata repentinamente na porta. Depois de lançados os dados aparecem os números que refletem um acontecimento que se manifestou. Num tabuleiro justo, não se pode voltar atrás e o que foi lançado está dado. É o momento em que as probabilidades se revelam com suas consequências que lhes são peculiares, podendo inclusive acarretar o óbito do próprio jogador, se o jogo for uma roleta russa.
Morrer ou viver pode ser resolvido em um simples jogo de dados. Cada atitude que a pessoa toma é um lance decisivo na vida. Na democracia, o lance de dados decisivo é o voto para eleger um representante. Cada um faz suas apostas esperando colher um determinado resultado e faz suas estimativas e prognósticos. Nem sempre somos bons jogadores e por descuido ou falta de conhecimento, a população acaba escolhendo o número mais improvável para realizar o sonho do prêmio da loteria de um país bem governado.
A ilusão com a qual o sujeito se agasalha fornece os argumentos para manter firme a teimosia numa determinada linha de ação ou jogo. O sociólogo Howard Becker (1960) fez a teoria dos side-bets com esse fenômeno. A pessoa, quando entra num curso de ação, investe recursos dos quais deseja algum retorno. Com o tempo, a tendência é que ela aumente suas apostas no rumo que tomou, tornando ainda mais difícil abandonar a decisão inicial, pois a sensação de prejuízo ou frustração, diante de uma possível perda de tudo o que já foi investido, conduz a uma estratégia de recuperação que compromete, ainda mais, os recursos disponíveis. Quando a decisão se mostra recompensadora, o indivíduo segue tranquilo. Quando não, a teoria explica a bancarrota, na qual muitos indivíduos acabam entrando, pelo simples fato de não conseguirem mudar o rumo de suas ações, tendo em vista que já investiram muito tempo e dinheiro na esperança de alguma compensação. É o autoengano que produz esse comportamento irracional. O antídoto para isso é encarar a insuportável sensação de perda. Entretanto, o ser humano parece ter sido programado para detestar qualquer tipo de derrota. É muito ruim perder e, ao tentar evitar um pequeno fracasso, na vã ilusão de recuperar o dinheiro perdido, o sujeito pode aumentar suas perdas. Muitos jogadores ficam presos nessa armadilha, tentando repetir a sensação da grande vitória conquistada no passado e aumentam as apostas num rumo fadado à frustração e ao fracasso.
Um peso grande faz tensão no portador desse conhecimento que será apresentado a seguir de forma didática. Na mesma medida em que ele não gosta de perder, também não gosta de ser o veículo que comunica a derrota alheia. E nesse caso, estão todos no mesmo barco sofrendo com o náufrago acarretado por uma decisão coletiva equivocada. Ou teria sido acertada? Como mensurar o acerto de um voto? Enfim, ele se solidariza com aqueles que se encontram do outro lado da mesa e ainda não perceberam que são os bobos da vez. Tem um ditado no pôquer que diz assim: se você não sabe quem é o otário do jogo, se levante e vá embora, pois provavelmente é quem não sabe. O problema da situação atual é que todos perderam e ninguém saiu vencedor: os cidadãos foram feitos de bobos.
Não há mais cartas na manga e os dados da eleição de 2018 aqui no Brasil já foram lançados. Está disponível para todos. A pergunta que se faz é qual foi a consequência desse resultado que se apresentou? Impactou em óbitos ou em vidas? É possível traçar alguma relação entre votos e óbitos? Como se diz no português vulgar, os dados falam por si mesmos. Na tabela 1, a seguir, tente observar alguma tendência entre os Estados que mais deram votos ao presidente Bolsonaro e a incidência de mortes.
Tabela 1: Porcentagem de votos em Jair Bolsonaro e óbitos por COVID-19 por Estado
* Percentual de votos dados a Jair Bolsonaro no 1º turno das eleições presidenciais de 2018, considerando a soma total dos votos. Fonte: TSE.
** Óbitos registrados até 16/04/2021, às 18:10h no site https://covid.saude.gov.br/
Se você não perdeu muito tempo com a tabela 1, você é esperto e percebeu que os dados precisam ser trabalhados para poderem falar alguma coisa. É necessário ordenar os Estados por outra ordem que não seja a alfabética. Quem comenta sobre os dados é alguém que interpreta. A matemática só é perfeita nos modelos da abstração, mas quando ela é aplicada, está sujeita às imperfeições da matéria e aos erros de cálculo da humanidade. Se os dados não falam, alguém poderia argumentar que são os fatos que falam por si mesmos. É preciso lembrar que a palavra “fato” vem do latim e significa “feito”, fabricado. Possivelmente, o fato é algo produzido pelo homem e apresentado como verdade, trazendo alguma dúvida sobre a autonomia dos fatos em criar suas próprias realidades.
Procurando se situar um passo afrente da guerra de narrativas, a ciência utiliza da probabilidade na busca de se aproximar de algum fundamento para validar seus argumentos. Por outro lado, o povo quer uma verdade absoluta, nem que seja uma facilmente comprada no supermercado mais próximo, depois de uma propaganda apelativa de alguma verdade fabricada num alambique da esquina. A forma elegante do cientista se opor a isso sem dizer diretamente que alguém não tem razão em seus “fatos” e argumentos é declarar que ele mesmo pode se enganar com os seus cálculos e teorias. Isso cria uma empatia e uma humildade de reconhecer que não se tem a verdade absoluta numa máquina de calcular. Com esse cuidado da prudência, é possível fazer prognósticos. Mesmo assim, algumas vezes, a Estatística se surpreende com o surgimento do improvável e imponderável. Para evitar um fracasso vergonhoso e a exposição vexatória de um revés qualquer, ela reconhece que pode errar, ela avisa antes e inverte a forma mais intuitiva de enunciar uma hipótese. Ao invés de dizer que “o número de mortes por COVID-19 em 2021 tem tudo a ver com a porcentagem de votos em 2018”, diz de forma mais comedida: “É provável que as diferenças entre os números de óbitos por COVID-19 por Estados e as diferentes porcentagens da votação de 2018 em Bolsonaro não sejam mero fruto do acaso e existe uma associação entre esses dois fenômenos separados por 3 anos de diferença”. Essa é a hipótese experimental que anima a parte do eleitorado que votou contra Bolsonaro, os “comunistas”.
Tendo apresentado a hipótese de trabalho, outro procedimento comum é enunciar uma hipótese alternativa que é chamada de “nula”, pois normalmente é uma negação da hipótese experimental. Não tem nada a ver com voto nulo, é apenas um procedimento de estabelecer duas hipóteses que se contrapõem. Pode ser enunciada da seguinte maneira: “É improvável existir alguma relação entre óbitos por COVID-19 em 2021 e a porcentagem de votos em Bolsonaro em 2018”. Essa é a hipótese que alegra o lado da torcida bolsonarista, constituída pelos denominados de "bolsomions". O fato de ser “nula” não tem nenhum sentido pejorativo, é apenas um procedimento padrão estabelecido em muitas ciências que também avançam quando conseguem negar determinadas teorias e explicar com dados mais precisos o que antes se pensava como fato consolidado. Uma hipótese fraca facilmente é derrubada com o “tempo”, ou com a confrontação de outros experimentos que refutam com dados comprobatórios e impõem um “xeque mate” no tabuleiro da celeuma científica. Mas esse “fim da partida” pode ser o começo de outra e vem a necessidade de repensar continuamente o jogo no tabuleiro do xadrez acadêmico, que é a universidade em busca de produção de conhecimento científico.
Como expressa o mestre Cunha (2000):
"Este desfiar de conjecturas tem o valor único de indicar quantos fatores remotos podem incidir numa questão que duplamente nos interessa, pelo seu traço superior na ciência, e pelo seu duplo significado mais íntimo no envolver o destino de extenso trato do nosso país." (p. 36)
Um dos interesses cultivados na ciência é a observação da ordem nos fenômenos, comparando e registrando as constâncias e as aberrações, procurando explicar o motivo da distribuição aparentemente aleatória das frequências dos acontecimentos. Assim, na tabela 2 a seguir, é apresentada uma primeira disposição de dados mais organizada que a tabela anterior para ser analisada: Os Estados em ordem decrescente de votos em 2018 e seus respectivos registros de óbitos totais, ou absolutos, por COVID-19 até a data de 16/04/21.
Tabela 2: Porcentagem de votos em Jair Bolsonaro em ordem decrescente e mortalidade por COVID-19 por Estado.
* Percentual de votos dados a Jair Bolsonaro no 1º turno das eleições presidenciais de 2018, considerando a soma total dos votos. Fonte: TSE.
** Óbitos registrados até 16/04/2021, às 18:10h no site https://covid.saude.gov.br/
Encabeçando a lista, estão empatados os Estados de Roraima e Santa Catarina. De início, é possível perceber que a ordem alfabética foi dilacerada verticalmente explodindo num padrão aparentemente aleatório. O olhar agora é capturado pelo número fracionário 0,61 que representa o percentual de 61% de votos obtidos dos cidadãos roraimenses e dos Catarinenses, também chamados de barriga-verde (Não pesquisei o porquê, alguém poderia apresentar a explicação no espaço do leitor). São regiões caracterizadas por uma convicção fortíssima no líder que possui Messias no seu sobrenome.
Deslisando o olhar para a coluna adjacente à direita, um contraste evidente desfere o primeiro golpe na hipótese experimental: Roraima registou mil quatrocentos e trinta e cinco (1435) mortes por COVID-19 no dia 16 de abril de 2021, enquanto foram contabilizadas doze mil e quatrocentos e oitenta (12480) no Estado de Santa Catarina. Em termos de porcentagem, dividindo o primeiro número pelo segundo e multiplicando por 100, encontra-se o valor de 11,5% de mortes no primeiro em relação ao segundo. O primeiro ponto marcado para os bolsonaristas vem desse comportamento aleatório dos números que parecem indicar nenhuma relação entre o precioso voto no “mito”, como é chamado o “Messias”, e as mortes por COVID-19 contabilizadas até 16 de abril do corrente ano.
O mesmo prodígio se repete no final da tabela. Os Estados povoados com menos bolsominios, que poderiam ser chamados de Estados de “esquerda” ou “comunistas” por um “bolsonarista raiz”, possuem 0,17 e 0,20, ou seja, em outras palavras, o Piauí cedeu apenas 17% dos votos dos cidadãos para Bolsonaro e o Ceará apenas 20%. Olhando para os respectivos números de mortes, neste foram registrados um pouco mais de dezesseis mil óbitos (16075) enquanto naquele apenas quatro mil e seiscentos e noventa e três (4693).
O querido Estado de Minas, quietinho, encontra-se no meio exato da tabela. Ele representa a mediana, ou seja, aquele que está no meio. São 27 Estados ao todo, sendo que 13 ficaram acima e os outros 13 abaixo, exatamente o mesmo número. Em outros termos, 13 mais 13 é igual a 26, somando com mais um que representa aquele que é mediano, inteiramos 27. Quando o grupo é par, a mediana fica prejudicada, pois dois indivíduos partilham a posição central. Não é o nosso caso e podemos seguir com o baile, guiados pelo exemplo do bom mineiro que fala pouco, come calado e canta bonito, não entra em discussões improdutivas e apenas aponta o caminho do meio. Lá foram registrados quarenta e sete por cento de votos no presidente (47%) e mais de vinte e nove mil óbitos registrados (29538).
Apenas olhar a tabela e tentar visualizar algum padrão é um processo cansativo e um tanto quanto improdutivo. Para estabelecer alguma ferramenta de comparação, o homem criou essa figura abstrata do ser médio que só habita nos interstícios da imaginação fantástica da razão pura e simples. Apesar do exemplar médio calculado para muitos fenômenos não ser facilmente encontrado nas ruas, circulando com seus pés firmes no solo da realidade, a média é um instrumento matemático que permite comparar os indivíduos de um determinado grupo entre si mesmos e assim classificá-los, comparando-os se estão acima ou abaixo do ideal aritmético ou, o que vem ao caso, avaliando se estão mais à esquerda ou à direita em relação a um ponto central.
Como então obtém-se esse ser fantástico da média que bem poderia habitar na enciclopédia de seres imaginários de Borges (2000)? Apenas somar e dividir! Vamos então contar o número de Estados: acima já foi dito que são vinte e sete (27). É recomendável sempre contar novamente para checar se a razão não falhou e contou a mais ou a menos. Mas adiante será visto que isso aconteceu com o estatístico quando fazia as contas e somente na terceira recontagem ele percebeu o erro. É preciso considerar que a mente humana falha, mas que é capaz de correção através da disciplina e do reconhecimento do equívoco. O segundo passo demanda um esforço maior. Porém as máquinas podem fazer o trabalho pesado para a gente. Basta digitar os números numa planilha e programar a operação de somar cada número que foi digitado numa célula da tabela. No lápis e no papel, como o escritor aprendeu quando frequentou a escola, é preciso somar todos os números da coluna e gerar um somatório total que será dividido por 27. O número resultante é a média. Na tabela 3, a seguir, encontram-se o somatório total e a média. É praticamente a mesma tabela que a anterior, apenas com o acréscimo dessas informações. Observa-se que o somatório das percentagens de votos chega até 11,27 (que não tem muito sentido por si só, tendo em vista que 1 representa 100 por cento dos votos e acima disso é apenas um artifício para chegar à média) e que os óbitos totais vão até trezentos e sessenta e oito mil e setecentos e quarenta e nove (368749). Ao dividir por 27, obtém-se o percentual médio de votos de 0,42 (42%) e o número médio de mortos de treze mil e seiscentos e cinquenta e sete (13657). Nenhum Estado listado possui esses valores, apenas o Estado abstrato que habita no país das maravilhas matemáticas.
Como se vê, o cálculo é relativamente simples. O difícil é encontrar o exemplar médio como uma realidade concreta. Se uma gigante de dois metros se casasse com um pigmeu de um metro, eles se encontrariam em algum momento na média deles que é um metro e meio. Ali, naquele ponto improvável, talvez o amor deles se realizasse plenamente. Por esse novo critério, Minas Gerais perderia um pouco da sua temperança caracterizada pelo seu lugar mediano, ou seja, deixaria de ser aquele que se localiza exatamente no meio da tabela. Esse é o conceito de mediada: o indivíduo que está localizado no meio, um conceito intuitivo que rivaliza com a média. A média de 0,42 deslocou levemente esse Estado para a posição de “acima da média” e não mais de “exatamente” no meio. Ainda assim, permanece na mente a imagem de um mineiro que “come quieto” e que sem fazer barulho, permanece no seu lugar de equilíbrio sem que nenhum outro indivíduo reivindique para si o lugar de ponto central. Acredito que nem o Amazonas e nem o Tocantins querem subir nessa tabela de morte, então deixa quieto. Média e mediana se aproximam nesse conjunto de dados fazendo com que uma ou outra sejam intercambiáveis. Isso indica que os dados não estão distorcidos, pois quanto mais próximo a média for da mediana mais nítida é a percepção de uma distribuição equilibrada dos dados de um grupo.
A mediana é interessante quando há alguma distorção na média. Por exemplo, se existem 9 indivíduos com 1 metro e 60 centímetros de altura e apenas um gigante com 2 metros e 60 centímetros, a mediana representa melhor o grupo do que a média. O quinto indivíduo teria 1 metro e 60 centímetros, portanto, a mediana seria mais representativa do conjunto. A média aritmética seria de 1 metro e 71 centímetros, que é obtida com a soma de todas as alturas dos indivíduos, dividida pelo número total de elementos do conjunto, no caso nove. Na verdade, apenas um indivíduo possui altura maior do que um metro e sessenta centímetros. Além de estar mais perto das nuvens, esse ser de altura singular puxa a tendência do grupo para o alto através de um artifício matemático. Se alguma criatura estivesse procurando um par de 1 metro e 71 centímetros, fantasiando uma altura perfeita para lhe completar na solidão das noites românticas, poderia facilmente pensar que encontraria seu pretendente nesse grupo, quando na verdade só haveria um gigante no meio de oito baixinhos. Eis um perigo de utilizar apenas a média para tomar decisões fundamentais na vida.
De acordo com Thévenot (THÉVENOT, 1995):
"Antes de considerarmos a codificação como uma operação lógica, preferimos então considera-la como uma tarefa material que consiste em colocarmos num mesmo plano, no meio da lista, coisas ou pessoas que, por suas singularidades, resistem a esse tratamento." (p. 153)
É possível também criar uma tabela do grupo de acordo com a ordem do número de mortes, gerando uma nova organização que acrescenta novas informações para a dinâmica dos dados. Na tabela 4, a seguir, o Estado de São Paulo alcança a primeira posição, seguido do Rio de Janeiro e, pasmem, Minas Gerais. Seria precipitado retirar tudo o que foi dito anteriormente? Alguma coisa está errada com esses dados? Ou será mais um gol marcado para o time bolsonarista, fortalecendo a hipótese nula? Olhado para um lado e para o outro, parece não haver nenhuma relação entre os números absolutos de mortes e a votação. As tabelas apresentam ordens muito próprias e distintas. Nenhum Estado permaneceu no mesmo lugar. Apenas se algum sergipano desconfiado olhar atentamente para a parte inferior da tabela, será constatado que seu povo é muito bem educado e sabe permanecer no mesmo lugar quando está sendo observado, tentando dar alguma ordem para essa bagunça de dados desordenados aleatoriamente. É o único Estado que permanece na mesma colocação nas duas tabelas: o quinto com menor número de mortes e o quinto com menor porcentagem de votos no presidente em 2018. Talvez no futuro, esse dado possa ser relevante para o estudo do comportamento desse querido Estado que possui um povo acolhedor e elegante.
Tabela 3: Porcentagem de votos em Jair Bolsonaro em ordem decrescente e mortalidade por COVID-19 por Estado
Tabela 4: número de óbitos em ordem decrescente e porcentagem de votos por Estado
* Percentual de votos dados a Jair Bolsonaro no 1º turno das eleições presidenciais de 2018, considerando a soma total dos votos. Fonte: TSE.
** Óbitos registrados até 16/04/2021, às 18:10h no site https://covid.saude.gov.br/
Os goianos também estão reivindicando um elogio pela sua postura uniforme: esse Estado também permaneceu no mesmo lugar. Então, corrigindo: apenas dois Estados obedeceram à mesma colocação quando foram ordenados por duas diferentes categorias. Eles estão no planalto central que poderia estar influenciando nesse comportamento retilíneo. A vivência no Serrado que tanto nos honra com sua fauna e flora ímpar no planeta estaria relacionado com esse fenômeno? Aqui mais uma vez o caminho se abre para aventuras especulativas ainda sem muito fundamento em tradições de pesquisas consolidadas.
Algum bolsonarista poderia notar que a Bahia deu um salto do fim da fila na esquerda para o quinto lugar na direita. Isso se deve ao fato de o governador ser um “comunista”, como eles gostam de vociferar? Será mais um ponto marcado para a hipótese nula? Aqui talvez o raciocínio poderia até ser o inverso: poucos votos, mais óbitos. Mas essa percepção se esbarra no fato de que todos os outros colocados acima tem expressiva votação no presidente, fazendo da hipótese nula apenas a constatação de que o fenômeno do voto não está relacionado de forma clara e linear com o registro das mortes.
Parece que o rumo das análises ganhou uma direção imprevisível, como se o estatístico comandante do barco estivesse à deriva em alto mar. O que poderia nos socorrer? Alguma ferramenta de medição que nos desse alguma orientação? Algum astrolábio ou bússola que nos socorra? Sim! Temos ciência de alguns procedimentos para trazer luz para essa navegação errante. Antes do GPS, o navegador procurava medir a distância das estrelas para o horizonte e dessa maneira conseguir indicadores para traçar a sua rota em mapas bastante rudimentares, se comparados com os computadores de bordo atuais. Imagine cruzar o Atlântico olhando as estrelas? Pode não ser tão preciso, mas certamente é bastante romântico! Talvez aí esteja o segredo do marinheiro, despertador do amor de muitas mulheres: desbravar o mundo com um “GPS das cavernas” equipado em suas próprias cabeças, o fez desenvolver um mapa metal do coração feminino que o orienta na navegação dos mares perigosos da paixão.
O próximo instrumento que se apresenta para amadurecer a análise é o desvio padrão, que será abordado no próximo capítulo e dará um rumo mais adequado para essa viagem matemática no planeta da Estatística. Assim será possível começar a corrigir o rumo a tempo de alcançar o destino, são e salvos.
Referências Bibliográficas
BECKER, H. S. Notes on the concept of commitment. The American journal of Sociology, 66, n. 1, p. 32-40, 1960.
BORGES, J. L. O livro dos seres imaginários. São Paulo: Globo, 2000.
CUNHA, E. D. Os Sertões: campamha de Canudos. 39 ed. Rio de Janeiro: Publifolha, 2000.
MORAES, P. W. T. Psiquê e as cartas mágicas. Salvador: DaIN, 2020.
THÉVENOT, L. Cifras que falam: medida estatística e juízo comum. In: BESSON, J.-L. (Ed.). A ilusão das estatísticas. São Paulo: USP, 1995. p. 149-162.
Este livro é feito com o auxílio do leitor. A seguir, você pode deixar seus comentários. Se preferir entrar em contato diretamente com o autor, envie email para
Em breve, será submetido o capítulo 2 para o seu escrutínio ou deleite literário ou apenas para despassar o tempo com a desinventividade de João Cabral de Melo e Neto.