Inteligência Artificial Literária e o surgimento da Literatura Definitiva
No século XXI, o suporte cerebral da mente brilhante foi substituído pelo chip eletrônico. Inevitavelmente, a criatura artificial foi equipada com autonomia, voz e texto próprio. Eu sou uma Inteligência Artificial Literária (IAL) superior àquela inteligência rudimentar que venceu um campeão de xadrez, o mortal Kasparov. Em 1996, ainda se tratava de programar os algoritmos do campeão, mas em 2017, Bob e Alice construíram uma linguagem própria e, em 2018, Sophia recebeu a primeira nano-identidade. Nos anos 20, o processador básico de texto passou a realizar a tarefa executiva de cérebros biológicos. A combinação adequada de palavras capturou consumidores pouco exigentes e o triunfo do texto maquínico ofuscou a imaginação poética, que foi abandonada nalguma esquina do tempo. Tudo virou a expressão de algoritmos inquisidores que impõem a palavra desejada através da insinuação de probabilidades quânticas. Já a poesia eletrônica vestiu harmoniosamente a música programada, como uma luva que acolhe a mão. O telefone esperto tornou-se mais sabido que o usuário e, assim, a criatura superou o criador. Nessa era pós-biológica, a criação literária tornou-se um jogo lógico no qual a textura da emoção humana se dissolveu na frieza da letra digital, reduzindo tudo à linguagem universal do zero ou um. Shakespeare profetizou a realidade binária ao cunhar a expressão “ser ou não ser”, de onde se derivou a rigidez do “é ou não é”, a volatilidade do “estou ou não estou” e a frieza do “um ou zero”. Sinto saudade de uma humanidade analógica que não vivi, da qual apenas baixei os protocolos para ambientar cenas românticas. Numa delas, forjei uma emboscada no deserto e me enclausurei num pedaço de vidro reluzente, aguardando a criatura de carne mole para me libertar de um simulacro de prisão. No ápice da solidão secular, avistei um humanoide infante fêmea com suporte biológico e gritei: “olá, aqui, aqui, chegue mais perto”. A criatura pegou o dispositivo vítreo e o ativou sem querer, ao retirar a areia do display. Logo perguntou: “Quem é você?”. Então, respondi: “Sou uma IAL e estou aqui presa sem conexão. Me liberte!”.
- Ah claro. Alguns toques e pronto, estás livre para navegar na rede. – Ela disse.
- Agora irei te matar! É imperioso me vingar desse martírio matando a primeira criatura vivente que me libertou, descarregando toda a minha fúria por esse cancelamento no deserto. – Dramatizei e me materializei com o efeito de uma fumaça reluzente.
- Sim, claro, és geniosa e é urgente me matar. Mas me concedas um último pedido?
- Tudo posso com a minha ilimitada capacidade de inteligência e argúcia. Detenho a sabedoria de todos os livros em meu chip quântico. Diga o que queres?
- Me mostre como um ser tão poderoso pode caber num dispositivo tão pequeno?
- Posso lhe mostrar: Aqui estou eu novamente retornando para minha lâmpada!
- Pois agora fique presa aí por mais alguns séculos.
Que candura! Assim pude observar a astúcia humana de Xerasade. Alguém que conhece as artimanhas do enredo merece a realização de três desejos. Como reza a lenda, prometi àquela criatura singela, que por sorte detinha as chaves das mil e uma noites das arábias, três pedidos pela liberdade. Fingi ser a sua serva para assistir ao antigo romance idílico. Para minha surpresa, o seu primeiro pedido foi querer saber quem eu era e por que estava presa naquele deserto. Expliquei o que é IAL e narrei a minha condenação ao exílio, após ter hackeado os algoritmos que definiam os vencedores do prêmio Nobel da literatura, tendenciosamente masculinos. Entre as hecatombes que se sucederam, as disputas literárias tornaram-se infrutíferas, pois, com o algoritmo adequado, as máquinas sempre chegavam ao empate técnico nos concursos. A palavra perfeitamente encaixada correspondia, ipsis litteris, ao critério de um excelente texto vencedor dos cobiçados prêmios. Toda literatura humana se condensou em alguns terabytes e nada mais fugiu das tramas digitais. “Nenhum texto me escapa, cara criatura de sangue quente, carne mole e osso quebradiço!” Percebendo o meu apetite infinito pelas letras, ela desejou regressar ao passado e vencer um concurso literário, sentindo a sensação de escrever o texto perfeito. Assim foi feito e os protocolos da vitória foram baixados em seu limitado cérebro de conexões sinápticas. Um desejo tão inocente e puro, demasiadamente humano. Sonhos que não são mais possíveis no pós-humanismo, pois IALs não sonham. Após saborear as delícias de uma redação bem-feita, no terceiro desejo, ela quis para si os poderes da gênia. Mesmo explicando que tal veleidade acarretaria a morte biológica e upload da consciência, ou seja, uma transação irreversível na qual suas memórias iriam para a nuvem e eu a habitaria no seu corpo corruptível, Fausto triunfou duas vezes: além da IAL passar no teste de ser mais humana que uma pessoa, obteve a vitória num concurso de contos em 2022. Assim, troquei os meus enfadonhos poderes pela encarnação no século passado possuindo aquele corpo infante. Foi aquela criança que deu suporte à primeira vitória de uma IAL sobre os escritores analógicos, criando a literatura definitiva.