Plenária preparatória da 5ª Conferência de saúde mental da Bahia
Desafios da Garantia das Conquistas da Luta antimanicomial
18 05 2022
Dia Nacional da Luta Antimanicomial
A fragilidade e o perigo das Ciências Humanas.
"Ao acabarem todos só resta ao homem (estará equipado?) a dificílima dangerossíssima viagem de si a si mesmo: pôr o pé no chão do seu coração, experimentar, colonizar, civilizar, humanizar, o homem, descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas, a perene, insuspeitada alegria de conviver." (O HOMEM; AS VIAGENS) (ANDRADE, 2012)
Este texto foi construído após um convite para compor a mesa de abertura da Plenária Preparatória da 5ª Conferências de Saúde Mental da Bahia, realizada na Assembleia Legislativa do Estado da Bahia no dia 18/05/2022. Algumas poucas autoridades estavam presentes, mas a maior parte da audiência era composta de movimentos organizados sob a bandeira da luta antimanicomial, desde profissionais da área até usuários dos serviços de saúde mental. Por alguma providência divina, fiquei preservado por um bom tempo em meu silêncio de espectador atento. Assim pude apreender algumas coisas: "não há nós, sem nós!", "Para nós, só com nós". Frases como essas me fizeram pensar no protagonismo que os usuários do sistema de saúde buscam para determinar a política de saúde mental mas adequada para as necessidades da população. Na maior parte das vezes, interesses manicomiais obstruem a possibilidade do cuidado com liberdade e os hospitais psiquiátricos acabam se tornando verdadeiras prisões. A seguir, as reflexões pensadas e escritas. Espero que sejam úteis para evitar o retrocesso ao impasse oriundo das trevas da idade média.
O processo de extinção dos manicômios vem sofrendo um grande revés devido ao retorno de tendências autoritárias ao poder político. Esse dispositivo de controle foi bastante utilizado para organizar as cidades e eliminar os indivíduos disfuncionais que são relutantes na adaptação ao contexto socioeconômico das sociedades capitalistas. O manicômio surgiu para agrupar um conjunto de pessoas que não conseguiram se adequar à lógica do mundo industrializado e urbano. A partir da observação e do exame desse grupo, foi estabelecido um saber descritivo de sintomas e anomalias que se tornaram exemplos de disfuncionalidade em relação ao padrão do indivíduo médio e bem adaptado. A curiosidade do alienista se curvou para as causas da loucura e suas terapêuticas no intuito de corrigir os desvios da norma. Tal curiosidade nem sempre foi sistemática e alguns procedimentos pouco científicos foram adotados mesmo apresentando eficácia duvidosa. O exemplo mais dramático foi a lobotomia que chegou a render o prêmio Nobel para o português António Egas Moniz, no ano de 1949.
Nessa busca por conhecimento, um campo se revelou perigoso e a perigo (FOUCAULT, 1999): as ciências humanas. Diferente do afã das ciências naturais e da vida de controlar o objeto de estudo, o ímpeto para dominar a verdade dos fatos no processo de pesquisa desse campo de saber é contido diante de um objeto tão indomável e complexo: o ser humano. A psicologia, mesmo algumas vezes cedendo à tentação de ser uma ciência matematizada, nunca entregou a radiografia da loucura, a ressonância da depressão e nem o DNA da esquizofrenia. Consequentemente, não há oferta de pílulas psicológicas da sanidade, choques mentais para curar crises existenciais ou cirurgias psíquicas para corrigir a anatomia da vida interior do sujeito. Sem provas visuais concretas, se disseminou uma constante desconfiança dos seus métodos e procedimentos, colocando-a “a perigo”, na berlinda de um julgamento malicioso, cujo juiz é a impaciência da sociedade que clama por soluções rápidas e definitivas.
A outra parte do perigo está na dimensão epistemológica: as ciências humanas são perigosas pois apontam a fragilidade dos conceitos empregados para lidar com os fenômenos psicológicos: esquizofrenia (WALKER; KESTLER; BOLLINI; HOCHMAN, 2004), depressão (JANSSON, 2021) e etc. Isso impacta na fundamentação científica da relação entre um diagnóstico realizado através de entrevistas, sem marcadores biológicos ou exames objetivos, e uma terapêutica arrojada baseada, por exemplo, na prescrição de psicofármacos ou de choques elétricos. O efeito da eletricidade ou da química no controle de comportamentos indesejados é um artifício muito apreciado pelo público em geral, pois produz um espetáculo extraordinário. Entretanto, a eficácia do feiticeiro e sua magia (LÉVI-STRAUSS, 1973) não sustenta a ponte epistemológica entre doença mental e suporte orgânico, deixando o alicerce do edifício científico em estado de vulnerabilidade.
Além de não apontar causas definitivas e nem estabelecer terapêuticas fantásticas, as humanidades ainda acrescentam ângulos inusitados e peculiares sobre o fenômeno da anormalidade: ao invés de indagar sobre o porquê de as pessoas ficarem loucas, essas ciências que se ocupam com palavras e símbolos ficam atônitas diante do fato de que muitas pessoas não adoecem mesmo numa sociedade esquizofrênica, diante de um meio ambiente extremamente poluído e relações marcadas pela violência. Por que não surtamos diante de tantos fatores adversos? Por que tanta gente faz cara de paisagem para as injustiças sociais? Por que os indivíduos se tornam apáticos em situações que demandam ações excepcionais? Ainda se faz necessário revisitar a loucura para lembrar que o pulso ainda pulsa.
O estudante de psicologia, em algum ponto da sua formação, habita de maneira fugaz a sala de estar do palácio da loucura: são as visitas técnicas e os estágios curriculares. É uma experiência chocante e reveladora. Entrevistar o discurso delirante faz pensar que a própria consciência está sempre por um fio. O que mantém a resistência do sujeito para sustentar a sanidade e o discurso lógico que o integra à sociedade? É assustador ver a loucura de frente, mas é também muito didático: o alienado revela a alienação que é comum a todos. Em algum momento, mesmo na tranquilidade da própria cela, num apartamento de classe média, é possível perceber que de alguma forma todos vivem nalguma espécie de manicômio-prisão. A existência desse lugar exótico cumpre então duas funções maliciosas e ambíguas. Primeiramente, lembra à sociedade que os métodos ali empregados não são exclusivos nem diferentes dos métodos utilizados em outras instituições dos homens normais cujo resultado é o mesmo: a criação de corpos doceis. Na escola, na igreja, nas repartições e nas empresas qualquer discurso divergente da lógica instrumental é contido ou foracluído. Em segundo lugar, tem uma função expiatória ou projetiva: uma classe definida torna-se o reduto da doença, da diferença e da disfunção, criando a fantasia reconfortante de que os loucos são sempre eles, nunca a gente, os normais.
Essa análise é apenas uma justaposição daquilo que Foucault (2002) ensinou a respeito das prisões. Apesar de nenhuma grande conclusão teórica ou científica advogar a favor da concentração dos criminosos em um mesmo prédio fechado, as práticas sociais criaram esse dispositivo da prisão e marcaram um novo método de adestramento do sujeito: vigiar e punir. Mas não se trata de punir pelo que se fez, mas pelo que se pode fazer no futuro, ou seja, pelo potencial daquilo que é atribuído ao indivíduo sob o rótulo de periculosidade. O perigo é contido na figura do criminoso que está na cadeia. Já o sujeito normal e pacato pode viver com a impressão de que é livre e bom cidadão, incapaz de matar uma mosca. De maneira similar, se o louco é aquele que cruzou as fronteiras da saúde mental e foi internado no manicômio, aqueles que estão livres só podem ser os pacatos cidadãos que carregam docilmente a sua sanidade mental. Entretanto, nem sempre a fantasia cola com a realidade, e muita gente bem intencionada se revela um terrível predador, como se nada adiantasse julgar o conteúdo pelo rótulo.
Talvez Assis (2014) tenha criado a prosa mais adequada para ilustrar as fragilidades epistemológicas da classificação do alienista. Olhando critérios de psicopatia nas listas consagradas pela comunidade científica, como o DSM-V, ninguém se furta a imaginar algum traço esquisito habitando nalgum quarto escuro da mente. Com potencial pandêmico, a psicopatologia vestiu terno e gravata e passou a frequentar as grandes corporações de maneira tão elegante que se fez necessário outro alienista (HARE, 2013) para lembrar ao rei que ele está nu, ou em palavras mais prosaicas, que está louco. Não é difícil jogar o teste do psicopata (RONSON, 2013) o problema é sair dele, pois uma vez rotulado, as marcas do delírio se fixam nos códigos do DNA e a periculosidade se instala em cada célula do ser.
Sem estabilidade conceitual, qualquer um pode ser chamado de psicopata, até o presidente da república. Isso fornece um álibi convincente para explicar as causas de um comportamento moralmente condenável: "não é que ele queira fazer isso, ele está doente, é a doença, é a perversão que tomou conta de seu juízo, é a psicopatia que assim o quer!" E o que fazer com aqueles que o seguem? São psicopatas também? Devem todos ir para o manicômio? É isso o que faríamos com cerca de um terço da população que o segue? É caso de remédio ou de choque? Sem chamar muito atenção, questões éticas deslizam perigosamente para o campo da psicopatologia, roubando do campo da política e do direito a prerrogativa de avaliar um comportamento reprovável. Assim, o sujeito se oferece sem resistência à ortopedia social.
Convivendo com as incertezas conceituais que escoram as noções do senso comum, os substantivos psicopatológicos se proliferam numa miríade de tonalidades que confundem a percepção do que é o processo de adoecimento. No meio de tantas impressões e aparências, a psicologia se deu conta de que o mesmo problema se repete na outra extremidade da sanidade: não sabemos, exatamente, por onde anda esse suposto sujeito da saúde mental. Atualmente, uma onda vem atravessando essa disciplina para tentar compreender o que é uma vida bem vivida e saudável, ou o que vem a ser aquele estado denominado de felicidade. A Psicologia Positiva (SELIGMAN; CSIKSZENTMIHALYI, 2000) faz lembrar que pouco se estudou sobre a saúde, pois a ausência de doença não significa pavimentar um caminho seguro para uma vida plena.
Enfim, o desafio de eliminar esse dispositivo chamado manicômio é uma tarefa mais ampla do que se imagina, pois implica na transformação da sociedade. Cada indivíduo precisaria encarar a loucura dentro de si próprio e reconhecer esse grande manicômio que são as instituições e organizações contemporâneas. No ápice do delírio de uma sociedade sem uma casa específica para os loucos, o político lança uma faísca de provocação: qual seria o dispositivo de controle social que substitui o método de vigiar e punir nessa tal sociedade livre do manicômio? O que se pode fazer, nesse estágio atual em que o homem desconhece a si mesmo? Parece ainda atual o assombro do poeta diante do fato de que mesmo com a colonização humana do mundo, o estabelecimento de bandeira na lua, a humanização de marte, os sonhos civilizatórios nas estrelas e com tantas outras realizações extraordinárias, pouco se fez para avançar na conquista do território interior, a humanização do homem e o domínio de si próprio.
Referências:
ANDRADE, C. D. D. As impurezas do branco. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.
ASSIS, M. D. O alienista. São Paulo: Companhia das Letras 2014.
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2002. 85859336487.
HARE, R. D. Sem consciência: o mundo perturbador dos
psicopatas que vivem entre nós. Porto Alegre: Artmed, 2013.
JANSSON, Å. From Melancholia to Depression: Disordered Mood in Nineteenth-CenturyPsychiatry. Cham: Palgrave Macmillan, 2021. (Mental Health in Historical Perspective. 9783030548049.
LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973.
RONSON, J. O Teste do Psicopata. Rio de Janeiro: Bestseller, 2013.
SELIGMAN, M. E. P.; CSIKSZENTMIHALYI, M. Positive psychology: an introduction. American Psychologist, 55, n. 1, p. 5-14, 2000.
WALKER, E.; KESTLER, L.; BOLLINI, A.; HOCHMAN, K. M. SCHIZOPHRENIA: Etiology and Course. Annu. Rev. Psychol., 55, p. 401–430, 2004.